Pai e filho: Marcados pela traição – Parte VI

Bonde dos anos sessenta

Caminhava lentamente pela rua Iguatemi de volta para casa. Estava muito atento ao bonde que em instantes passaria por ali. Gostava de correr ao seu lado, me dependurar no estribo e ficar brigando com o vento e os galhos das árvores que eram muitos. Aquela rua era como se fosse minha casa. O clube Pinheiros, de tantas glórias esportivas sempre me fascinou.

Minha família era sócia e meus pais me incentivavam para que eu me tornasse um esportista. Claro que naquela época o clube era modesto, mas sempre honrando o esporte brasileiro com sua tradição de garra.

Aquele bonde sacudia de lá pra cá, daqui pra lá e, eu no estribo me divertia quando o condutor parava a metros do ponto. O freio não era o seu forte. Finalmente chegara ao largo de Pinheiros. Lá era considerado ponto final. O bonde fazia um circulo pelo Largo da Batata e retornava para o centro até o Teatro Municipal de São Paulo. Percorri aqueles quatro quilômetros que me levariam para casa e, à distância reconheci a Carmem, minha amiga do peito.

Não gosto muito de falar da casa da Macunis, me incomoda. Aquele passado que não consigo lembrar. Engraçado, porque me lembro com riqueza de detalhes, acontecimentos tão longínquos em minha mente e não consigo lembrar da infância naquela casa? Sempre tento mas nunca consigo. O que será que de tão traumático aconteceu?

Abracei a Carmem muito forte e, beijando aquela bochecha perguntei-lhe o que eu merecia comer naquela hora. A preta velha abriu um sorriso de lado a lado demonstrando o grande afeto e respeito que nos unia. Ela imediatamente abriu o  portão e sumiu para dentro da casa. Sorri, eu sabia o que ela iria fazer. Saboreando aquele feijão branco com dobradinha e polenta perguntava sobre os últimos acontecimentos daquela casa. Bastou isto para que ela disparasse a falar, e enquanto a ouvia, me deliciava com meu prato predileto. De repente…

Maria Dupré minha avó com Andréa,minha filha.

… Ouço resmungos ao longe. Imediatamente levantei e fui ao encontro daquela voz. Quando me viu, o susto fora tanto que quase

perdera sua dentadura. Minha “nonna” Maria. Seu rosto ficou tão vermelho que pensei que estivesse passando mal. Nada poderia ter me deixado mais feliz do que aquele encontro. Voltei para a mesa levando aquele “barrilzinho” comigo. Sentou-se ao meu lado, e chorosa perguntou como eu estava. Disse que estava bem e, assim que foi servido o café, nos dirigimos ao seu quarto. Contei todo o acontecido.

Já no meu quarto comecei a desfazer a maleta… Aquela casa. Tantos acontecimentos ocorreram nesta casa… … meu primo Rui Paulo Mazzei,cantava “Love me Tender” maravilhosamente bem. A voz e seu “jeitão” lembravam “Presley”. A luz tênue daquele lugar recomendava aos casais uma boa dose de romantismo. Todos acomodados em “puffs” participavam daqueles recitais. Ao fundo a banda fazia o acompanhamento. Meu pai havia pedido ao Erasmo, pedreiro de confiança dele, que fizesse da garagem um canto aconchegante onde pudesse reunir os amigos. Imediatamente me ocorreu fazer daquele lugar um ambiente onde a música e a poesia pudessem reinar. Daí para um roubo ao amplificador da vitrola da casa foi um segundo.

Eu, nos anos sessenta

A caixa acústica era enorme e mal consegui levá-la pro seu destino. Ato contínuo carreguei o amplificador e, como conseqüência formei com mais três amigos uma banda de rock. Esta era a banda que acompanhava ,naquele momento, meu primo. A musica sempre fez parte de mim. Meu pai reunia alguns amigos e saiam pela noite fazendo serestas inesquecíveis. Adorava acompanhá-los. Oswaldo, o violeiro, era o mais jovem deles e sem muita cerimônia pedi que ele me ensinasse violão e, em contra partida, eu o ensinaria piano e sanfona. Do violão para a guitarra e daí pro Rock”d Roll” foi um estalo. Nunca, porém, esqueci das serestas , dos chorinhos…das canções. Tinha um repertório bastante farto. Me considerava um bom seresteiro. Carreguei comigo os sons em todas as suas formas. Uma boa parte de mim é recheada de música.

Tínhamos em média dezesseis anos de idade. As meninas  debruçavam-se sobre nós pedindo esta ou aquela música e  de passagem um cheirinho sempre sobrava. Elas eram terríveis , conseguiam sempre o que queriam, adorávamos aquele assédio, claro. Meninas lindas, meia luz, a música, o clima estabelecido..não dava outra…Pelo menos uns beijinhos…!! Aquilo que um dia fôra uma garagem tornou-se uma atração para o povo teen da época. Era certo….Sábados  á tarde o ponto era a boa e velha casa da Macunís. Saudades, Meu Deus….Dedico este momento de minha alma a todas as meninas e rapazes que nos nutriam, naquele espaço de tempo, de tanta felicidade e amor.

…Meu quarto era bastante aconchegante , principalmente para alguém que acabara de sair de um lugar como aquele sanatório. Lembrei-me do dr. Marco Aurélio olhando firme para mim…viajei para a hora da minha despedida daquele lugar que jamais sairia de minha mente…

…Estava vestindo uma calça jeans rasurada com cândida, uma camisa também azul, resolvi caminhar a pé pelo alto de Pinheiros. Não sabia exatamente onde queria ir primeiro. Resolvi ir até o balão pra ver se tinha alguém da turma por lá. O balão era uma praça nas ruas Simão Álvares e Moraes, e era lá nosso “quartel”. Não havia ninguém da turma. Pensei no sr. Reis. Comecei a caminhar para a rua dos Tamanás. Sabia que o encontraria, com certeza. Cegara ainda jovem e, jamais deixou-se abalar por isto. Fora campeão de natação pelo clube Paulistano e o cloro ocasionou sua cegueira. Devia estar naquele momento sentado em uma poltrona , ao lado de dona Pauliquinha sua eterna companheira,”vendo” televisão que era narrada naturalmente  por ela. Casal simples de bom trato com a vida, jamais ouvira deles qualquer reclamação ou vira desprovidos de um sorriso gostoso nos lábios. Jamais.

Tratava os amigos de seus filhos , José e Fábio, como seus filhos também. O amor que eles nos passavam era proporcional ao nosso por eles. Não havia quem não gostasse do casal. Quando entrei para o colegial e fui transferido de escola para perto de casa , fizemos um acordo, sr. Reis e eu. Todas as manhãs eu leria para ele os jornais do dia. Então, logo cedo, saía de casa com meia hora de antecedência , comprava os jornais matutinos na banca da esquina  para a leitura das notícias. Enquanto bebia o café que Pauliquinha preparava, ia colocando o sr. Reis em dia com o mundo.Quando a notícia era boa sua gargalhada ressoava pela grande casa e, senão, se fazia silencioso com seus dedos coçando os brancos cabelos como sinal de reprovação com a cabeça. Aprendi muito com ele e dona Paula. Seus filhos , José e Fábio tiveram vidas diferentes e ao mesmo tempo parecidas.

Fábio Gonçalves dos Reis

O Fábio tinha o temperamento da mãe , mais desligado , bonachão e interessado em ciências exatas. O José “Reizinho” era o pai escrito. Sempre humorado , nadador e notívago. Muito boêmio , desde o nascimento. Foi o primeiro da turma a batalhar seu próprio dinheiro. Pôs-se a trabalhar logo cedo. Sofreu um dramático acidente de carro que o fez atravessar a vida com esta lembrança pelo corpo. Principalmente no rosto e pernas. Levou alguns anos para se ver livre dos pinos e travessas em seu corpo. Aquele acidente abalou a todos e, principalmente os pais. Envelheceram muito em pouco tempo. Seu Reis morreu anos depois, nos deixando um imenso vazio. O Reizinho fez administração enquanto o Fábio se formou em Física nuclear.

Hoje,morto,Reizinho acalma meus sentimentos.

Fabinho por sua vez,tornou-se um dos melhores navegadores marítimos.

Meus amigos de infância estarão comigo,na sequência.

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