Pai e filho: Marcados pela traição – Parte V

Lambretta De Luxe

… Era tempo de Lambretta. Os mais abastados tinham as do tipo “De luxe” e os outros “Standard”. As “máquinas” ficavam numa praça arborizada em frente a escola italiana. Sempre que podia, o diretor do então DST (departamento de serviço de trânsito) mandava apreender as lambrettas. Era sempre isso. Prendia, soltava. Até que um dia, combinou-se inverter o cenário.

Seria a nossa vez de darmos a blitz na polícia. As alamedas do parque ficariam estreitas para tantas motos e lambrettas. No centro da praça tinha um laguinho que, para homenagear o momento, o denominamos de “Pista de boliche”. Pra cada guarda e moto que caíssem no lago seria um verdadeiro Strike.

Saí daquela escola graduado em “brincadeiras criativas” Bem, voltando a nova escola, minha namoradinha me deixava desnorteado de linda que era. Não conseguia me concentrar nas aulas, mesmo tendo sido convidado a me retirar do outro colégio, não havia adquirido o Know-How suficiente para enfrentar estes sentimentos. Era tão apaixonado por ela, que até entrei para a fanfarra da escola. Tocava Tuba. …

Aquelas lembranças trouxeram um sorriso em meus lábios. A vida era uma festa, imagine. A vida, na realidade, é isso que vejo pela janela. Tristeza, dor e infelicidade. Maldita janela. Achei por um momento que a tragédia que se abatera sobre nossa família fora apenas ilusão da minha cabeça. Tive tudo. Um lindo lar,  educação, amor, amigos e, particularmente um grande amigo. Rubens, meu pai…

…Seis de Outubro de 1965, ele não resistiu ao sexto infarto. Morreu sem saber que quase todos os seus “amigos e parentes” o haviam usado e traído. Pensara que se restringia a um grupo de não mais do que seis pessoas. Eles o  mataram. Foi este seu “atestado de óbito”, na minha perspectiva.

Já não me lembro de quanto tempo estive internado naquele Sanatório. O tempo não passava. Vi gente chegando e outras tantas partindo em solitários cortejos fúnebres. Aquelas imagens do rabecão saindo pelo grande portão me marcou para sempre. O dia estava muito ensolarado. O céu azul, azul, sem uma única nuvem, típico das tardes de outono. Lia no banco de jardim um livro muito interessante sobre a fundação da BBC de Londres. Se eu já era uma pessoa empolgada por comunicação, depois daquela leitura, me tornei um aficcionado por ela…

…Um dia o velho e querido Hermínio Sachetta, diretor de redação do Jornal de meu pai, pediu-me que levasse uma correspondência, em mãos, para Walter Sampaio então diretor de jornalismo da televisão Excelsior. Como o Walter não se encontrava no momento em que lá estive, aproveitei para “passear” pelos seus estúdios. O impacto fora impressionante. Ficara verdadeiramente apaixonado por tudo aquilo. A movimentação das pessoas, os artistas, o vai e vem das bailarinas, os cenários sendo montados, a orquestra ensaiando, enfim, sentia que aquele era meu mundo.

Era comum na época se dizer que “filhinho de papai tem que ficar em casa com a mamãe.” Havia discriminação social pra cima, ou seja, não poderia me apresentar com meu nome completo pois desta maneira denunciaria minhas referências. Raciocinavam eles, que alguém de maior poder aquisitivo não poderia “tirar” o lugar de um menos abastado. Tinha que arrumar uma forma de contornar aquele problema. Encontrei. …Neste momento ouço uma voz de timbre doce e suave, que de longe sabia de quem se tratava… meu médico. Percebeu que eu estava entretido na leitura, com meus olhos brilhando e meus dentes se expondo ao brilho do sol.

Sorria verdadeiramente. Perguntou-me como  estava meu estado de espírito, para que logo pudesse me dar alta e partir para luta. Dr. Marco Aurélio soube em detalhes, por mim, toda a minha vida. A princípio surpreendeu-se com a minha resistência psicológica e emocional.

Contara a ele que amigos meus não resistiram ao que eu passara. Ter tudo e, da noite para o dia perder tudo, transtornava qualquer mortal. Impossível de uma hora para outra a adaptação para o outro lado do balcão. O orgulho, a vaidade, os valores, a falta de condição econômica e financeira, faziam de você um ser cabisbaixo a todos e a você próprio. Sempre se imagina uma única saída para este tipo de cilada da vida. Graças a Deus não fora esta a minha opção. Embebedava-me, brigava com a vida, ia atrás dos traidores de meu pai, que aliás, conheço a todos muito bem.

Cheguei a disparar um tiro em direção ao vazio para fortalecer a idéia de fazer uso da violência que alimentava a minha alma. Não sei porque lembro perfeitamente dos encontros do meu pai com Getúlio Vargas, Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Roberto Marinho, entre outros. A oratória era o ponto alto dessas reuniões. Todos eram jornalistas extraordinários, não importando suas ideologias. Lembro-me dos encontros dos “Prestes”.

Primeiro Congresso Eucarístico Internacional-Aterro da Glória-RJ-1955

A política e o desenvolvimento do processo industrial e agrícola brasileiros eram assuntos relevantes mas, o Papa Pio XII em 1954 no Aterro da Glória, Rio de Janeiro, participando do Primeiro Congresso Eucarístico Internacional, era o ponto alto na minha memória.

Era muito menino mas, a companhia de meu pai e dos mais velhos me estimulavam a seguir os passos dele. Cresci participando de sua vida profissional e pessoal. Conheci de perto seus problemas e seus conflitos. Não entendia muita coisa, claro, mas o tempo me fez compreende-los. Se por um lado fora um privilégio esta vivência, por outro, sofria com os maus momentos por ele vividos. Por isso, também, me revoltava aquelas “amizades” que o cercavam. Tinha instinto. Sabia que delas viriam às adversidades. As pessoas eram verdadeiramente ambiciosas, ratazanas, “esgotos humanos”, ou quase humanos.

Finalmente era o dia de minha saída. Estava muito excitado.Tinha muitos afazeres ainda, a começar pela minha modesta maleta. Quando um paciente recebe alta, a direção do sanatório o convida para uma despedida com todos os internos. É difícil pensar que este evento pudesse ser alegre ou triste, havia forte dose dos dois sentimentos. Sabia que sentiria saudade de todos, principalmente dos mais velhos. Saí do quarto e me dirigi a grande mesa para tomar o café da manhã. Meu pijama denunciava que esquecera de deixar uma muda de roupas para minha saída. Ri  de mim mesmo e segui ao encontro dos outros, que me esperavam com largos sorrisos e algumas lágrimas.

Passamos a ser amigos da mesma vida, dos mesmos dramas, da mesma  ótica. Foi uma escola para mim.  Sabia, entretanto, que teria que conversar uma conversa dura com o Dr. Marco Aurélio. Fiz o passeio de sempre entre as alamedas, acompanhado de dois velhinhos. Ele de bengala e chapéu panamá, ela com um elegante tailleur. O casal disparou a falar de suas famílias, de seus abandonos, enfim, suas solidões. Aprendi a conhecer bem de perto aquele problema. Minha família mal sabia que eu estava num Sanatório. Falamos de coisas diversas. A copa de 62. O golpe que Jânio Quadros dera no povo que o sufragara nas urnas. A confusão que reinava em Brasília. A revolução. O exército se deslocando e o povo tenso. Enfim, colocando a conversa em dia com os adoráveis velhinhos. Claro que a esta altura estava composto, com jeans e camiseta branca, que aliás era o uniforme dos jovens da  época. O sino começava a tocar e nós que nos encontrávamos um pouco distante da cantina, apressamos nossos passos. A mesa era farta, todos riam muito, que bom, saudaram-nos com copos de água, erguidos em suas mãos. Estava emocionado. Para um menino que chegara bêbado, debilitado e sem estima, aquilo era tal como um prêmio.

O grande momento chegara. Ia ao encontro do médico e depois….vida nova. Mal acreditava que tinha conseguido me salvar. Próximo à portaria, distante dos demais internos, com o braço em meu ombro perguntou-me se aceitava um conselho. “Claro que sim” respondi prontamente. Ficou frente a frente comigo e, olhando  dentro dos meus olhos disse:

”Você  deve vestir uma armadura profissional e reservar esta pessoa que você é para quando o mar ficar calmo”. Ele sabia de tudo que eu passara e o que viria pela frente. Dizia isto no sentido de fazer de mim o melhor homem possível, fazer de meus trabalhos o melhor, fosse o que fosse. Já havia decidido retomar o caminho da televisão, no mesmo estágio de cabo-man que fora e, pretensiosamente prometia a ele que lutaria para ser um dos melhores profissionais deste país. Depois cuidaria de mim, sem a armadura. Resumo: eu seria  vinte e quatro horas por dia um profissional. Postura de profissional. Evitar sempre o pessoal,  pra não me machucar com possíveis resvalos com este meu passado tão recente.

Sérgio Mattar

Queria viver.

Viver muito intensamente esta vida. A mesma vida que quase me matara.

Dr. Marco Aurélio Reis, mais que médico  fora meu confidente e conselheiro, amigo e anjo da guarda. Devo esta a ele. O grande portão abriu e saí, muito lentamente.

Sentia uma mistura de tristeza e de alegria. Sabia que seria um vencedor na vida. Aquele portão fôra, para mim, a distância entre a vida e a morte. A chuva me arrastara para aquele lugar. E agora, o Sol me guiaria para a vida, para o resto de minha vida.

Saí do Sanatório e lá dentro adormeceriam minha infância e parte de minha juventude, minhas confidências e minhas revelações mais secretas.

O esplendor e o morrer de um jovem, sua destruição e o seu renascer.

20 comentários sobre “Pai e filho: Marcados pela traição – Parte V

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