Pai e filho: Marcados pela traição – Parte-IV

Jornal Shopping News-1959

…Entrava a década de 60 no esplendor da minha adolescência. Todas as tardes ia ao Jornal de meu pai trabalhar nas linotipos. Me sentia importante no que fazia. Minha vida profissional começava ali, entre a rotativa e as folhas de flandres. Sentia muito orgulho do velho Rubens, meu pai. Eu era feliz.

Já passava das seis da tarde. Era uma sexta-feira. Tirei o carro do estacionamento do jornal e comecei a subir a rua Álvaro de Carvalho em direção a nossa casa. Logo que entrei na rua Augusta, meu pai pediu que passasse antes na padaria “Nosso Pão” lá na Praça Marechal Deodoro, para comprar pão de Glúten. Virei à direita, na rua Maria Antônia e lá fomos nós. Na altura da faculdade de Filosofia meu pai perguntou-me se estava bem pois notara que eu estava pálido, no que fiz um gesto “assim-assim”, com as mãos. Na metade do caminho para casa parei o carro e disse a ele que estava me sentindo “esquisito”. Sentia minhas pernas pesarem, meu coração disparar e minha respiração descompassar. Faltava-me o ar. A sensação era a de “desabar a cada momento”. Ele imediatamente tomou o volante e  levou-me para o consultório de um médico famoso e respeitado, bem ao lado do cine Paulista, na rua Augusta.

Diagnóstico: “Desconhecido”.

Já refeito mas, muito abatido e com ardência nos olhos, deixamos o consultório e fomos para casa. No caminho ele pediu para que eu relatasse, em detalhes, o que sentira. Após ter lhe contado, passou a mão pelos cabelos e balançando o rosto fez sinal negativo com a cabeça. Quase como murmúrio, sussurrou consigo mesmo:

“Herança maldita”.

No espaço de tempo entre onde estávamos e a nossa casa ele descreveu tal e qual tudo o que eu havia sentido. Só que a experiência fora vivida por ele. Ficamos tensos…

…De repente entra o médico como sempre sorridente. Reparou na minha expressão preocupada e perguntou-me o que acontecia. Mal sabia por onde começar. Relatei o que já havia contado a meu pai. Ele ouviu com atenção e quase que não querendo saber a resposta, perguntou-me se aquele médico havia receitado algum medicamento. Como era de hábito usar aquele remédio, minha resposta foi de pronto: “Vacotonil”. Agora quem ficara com a expressão fechada fora ele. “Vacotonil”?… procurando em mim a certeza do que falara. Contei a ele que desde o dia em que fui àquele médico, passei a ingerir regularmente o tal remédio. Nada poderia ter deixado o Dr. Marco Aurélio tão furioso. Pediu para que eu sentasse a sua frente e, de maneira clara e direta me explicou as conseqüências maléficas do uso daquele poderoso psicotrópico misturado ao álcool. Estava petrificado. Perplexo.

Imediatamente pegou o telefone interno e pediu a presença da enfermeira chefe em seu gabinete. Explicou-me que ele mudaria todo o meu procedimento pois, entendia que meu fígado, dado o tempo de uso do medicamento,  possivelmente já fora atingido. Tão horripilante quanto isto… Minha cabeça também.

Os dias que se seguiram foram um verdadeiro inferno para mim. Quase não saía mais do quarto, pois a crise de abstinência que aquele remédio me causava era muito forte. Tinha verdadeiros delírios e imagens destorcidas em minha mente. O remédio, que inocentemente ingeria até aquele momento fora brutalmente cortado. Esta foi minha “segunda morte”.

As maciças doses injetáveis de insulina e a quantidade de medicamentos que se seguiram, me fizeram inchar. Aquelas tremedeiras eram assustadoras. Naquele quarto sombrio e sem aconchego não conseguia me ver mais neste mundo.

Fígado e mente. Assustador prognóstico.

Engraçada a vida. Levou-me até aquele Sanatório, templo de cura, para me anunciar a morte.

A noite era fria e o modesto cobertor mal me cobria. Levantei-me para olhar pela janela. Sonolento pela  medicação, via nas alamedas vazias o destino de todos nós. Meu sentimento era horrível.

Aquele menino alegre e divertido, estava se entregando aos poucos. Não podia. Precisava reagir aquela depressão.

Minha mente foi passear um pouco nos anos dourados… Os grandes salões paulistanos, aconchegando as alegres debutantes e seus pais pimpões. As orquestras se revezavam entre as valsas vienenses e as baladas internacionais. Era lindo e romântico. Os meninos vestiam Black-tie e as meninas vestidos longos que destorciam suas formas. Mas nada era comparável aos seus cabelos. Armados com Bom Bril e sustentados pelo indelével laquê, o resultado do “bolo” era danoso. As meninas, porém, amavam o todo da “obra”. Eu tentava entender!

…A janela daquele sanatório ajudava a conectar-me com a vida. Conseguia, com saudade, relembrar rostos que foram importantes em minha trajetória…

… Quando entrei no novo colégio, fiquei conhecendo minha primeira paixão, bem, na verdade presumo que era este o sentimento.

Aquela escola era uma novidade pra mim. Mais modesta, menos sisuda e, aparentemente mais fraca que a outra que estudara.

Eu acabara de sair de um colégio muito rigoroso, italiano, onde algumas aulas eram ministradas em latim e, muita música em seu conservatório. Os professores tinham que se fazer personagens severos de uma ópera  entediante. A hora do recreio, bem, é quase impossível descreve-la.

Hoje são senhores probos e poderosos,…mas foram terríveis…!!!  As famílias tradicionais italianas, como as do interior de São Paulo e as quatrocentonas paulistanas, eram muito “criativas”, tanto que fundaram uma instituição de nome “Clube dos Cinqüenta”. A “jóia” pra se entrar era a seguinte: obrigatório dar um prejuízo a alguém de no mínimo 50.000,00 cruzeiros. A sede deste clube ficava no Guarujá, ou melhor, no GuaruJafé, à esquerda de quem chega na cidade. À direita é o GuaruJacó e no centro GuaruJapão.

…Continuava a olhar fixamente para o nada ,sentindo um vento frio que transpassava as frestas da janela. Minha cabeça viajou. Os sons dos pingos d’água foram sendo absorvidos  pelo som de “Over the Rainbow”…Estava muito longe dali…

Baile dos anos sessenta

…As orquestras se esmeravam em seu repertório. As domingueiras eram verdadeiros sucessos. Ah… as músicas, que músicas…!! As meninas sentadas muito recatadamente, esperavam os rapazes virem convidá-las para uma contra-dança. Meu medo era levar “tábua”, ou seja, a menina declinar de meu convite. As conversas ao pé do ouvido no meio dos salões eram armas fatais para um início de romance. As meninas eram lindas, lindas, lembro-me de algumas delas. A vida era uma abstração de problemas. Sorríamos sempre. Dançávamos sempre. As grandes orquestras eram nossas cúmplices.

“The Platters, Pat Boone, Nill Sedaka, Paul Anka, Elvis, Mancini e tantos outros ótimos colaboradores”. A vida era uma festa.

Pensei nos meus amigos…Como estariam! E minha família, meus colegas de escola, enfim, todos…

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